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Nem dominicanos nem haitianos: a luta dos apátridas por uma identidade
14 DE ABRIL DE 2023
Quando tiver a carteira de identidade, Andrés espera largar o trabalho árduo do canavial e buscar uma vida melhor. O documento pode demorar: ele nasceu na República Dominicana, mas sua nacionalidade, como aconteceu com milhares de pessoas, foi retirada há uma década.
Sua mãe é haitiana. Seu pai, dominicano, não o reconheceu.
Este jovem de 22 anos trabalha nos canaviais de El Seibo, 120 quilômetros ao oeste de Santo Domingo, em meio aos gritos de seus companheiros para mover os bois que arrastam uma carroça cheia de cana de açúcar.
Eles esperam coletar cerca de quatro toneladas, pelas quais receberão em torno de 16 dólares (78 reais, nos valores atuais) para dividir entre os oito que compõem a equipe.
“Nasci aqui… minha nacionalidade é dominicana”, insiste Andrés, que tem certidão de nascimento, mas não tem o documento de identidade, essencial para qualquer procedimento.
“Eles estão fazendo as diligências” para que eu consiga obter, conta. Mas há um problema: as autoridades “querem que eu tenha a carteira que diz estrangeiro e não vale a pena”, afirma.
Andrés é um dos mais de 250.000 dominicanos de pais estrangeiros, a maioria do Haiti, que perderam a nacionalidade devido a uma decisão de 2013, aplicada retroativamente aos nascidos entre 1929 e 2010.
Ter nascido neste país de 10,5 milhões de habitantes não garante a obtenção da nacionalidade, mas no passado já foi assim, antes de uma reforma constitucional em 2010.
Desde a sentença, milhares foram expulsos e outros sobrevivem como podem nos ‘bateyes’, comunidades precárias de casas de madeira com telhado de zinco e latrinas externas, onde vivem os trabalhadores da cana.
Lá, as rondas migratórias são menos frequentes, às quais ficam mais propensos quando se deslocam para as populações urbanas para trabalhar, estudar ou ir ao médico.
Grávidas foram deportadas após exames médicos, assim como pessoas nascidas e criadas na República Dominicana, sem vínculo algum com o Haiti.
– Outra mãe, sobrenome diferente –
A noite cai em um dos bateyes de El Seibo. As crianças brincam nas ruas de barro e grupos de trabalhadores se divertem jogando dominó e fazendo piadas em crioulo, língua haitiana derivada do francês.
A maioria dos trabalhadores da cana é haitiana ou descendente de haitianos, situação que remonta à época do ditador Rafael Leonidas Trujillo (1930-1961), que promoveu a busca de mão de obra no país vizinho.
Como a vida no Haiti ficou mais difícil, os trabalhadores decidiram ficar na República Dominicana.
Em sua maioria analfabetos, esses trabalhadores foram registrados em um livro diferente do oficial. Eles receberam uma “ficha”, que nada mais era do que um comprovante de emprego. Não receberam nem visto nem permissão de residência.
O Tribunal Constitucional considerou-os “em trânsito” e impediu que eles e seus descendentes conseguissem a nacionalidade.
Algumas famílias haitianas pagaram a dominicanos para registrar seus filhos como seus, mas com sobrenomes diferentes dos pais.
O governo anunciou em 2014 um registro especial para os afetados com certidão de nascimento dominicana, o chamado grupo A, que poderiam optar pela nacionalidade. No grupo B estão aqueles que não possuem documentos, os “estrangeiros”.
– “Não vamos a lugar algum” –
O processo, cheio de obstáculos, já acabou e o movimento cívico Participação Cidadã calcula que apenas 26.800 pessoas regularizaram sua situação.
Restam centenas de milhares que “não são daqui nem de lá”, lamenta Elena Lorac, de 34 anos, ativista do movimento Reconhecidos e afetada pela sentença. “Todas essas políticas de desnacionalização nos deixam diante de uma enorme vulnerabilidade”.
A República Dominicana mantém uma relação difícil com o Haiti, repleta de xenofobia. Cerca de três milhões de haitianos vivem no país vizinho.
“Eles imediatamente apontam para mim e dizem: ‘Essa é haitiana’, por causa da cor da minha pele e porque tenho cabelos crespos”, conta María Paul, de 53 anos, que diz ter nascido na República Dominicana, mas nunca foi registrada.
Ela recebeu uma carteira de identidade de “estrangeira” que expirou e ela não conseguiu renovar.
“O Estado entende que nasci no Haiti porque me chama de ‘imigrante'”, questiona. “Meus pais eram imigrantes, mas eu não sou imigrante”.
Os ativistas apresentaram recursos aos tribunais, incluindo a anulação de um registro civil paralelo criado para os afetados pela sentença. “É um apartheid de registro”, resume a advogada Patrícia Santana.
Criticado por endurecer sua política em relação ao Haiti com mais deportações e um muro na fronteira, o governo do presidente Luis Abinader não quis comentar o assunto.
Organizações internacionais oferecem apoio aos afetados, mas relutam em falar sobre o tema.
Elena é enfática: “Estamos aqui, não vamos a lugar algum, porque nem conhecemos o Haiti”.
Fonte: Notícias Uol
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