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Correio Braziliense – Meu nome é orgulho: como o direito ao registro em cartório trouxe cidadania
10 DE JULHO DE 2023
Dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais do Brasil calculam 49 retificações nos cartórios da capital do país, em 2021 e em 2022, cada. Especialistas destacam importância social da modificação.
Ter em seu documento o gênero e o nome com o qual você se identifica tem valor especial. Desde 2018, O Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece esse direito que, por meio do Provimento nº 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), autorizou os cartórios a realizarem a troca para brasileiros LGBTQIAP+ . Nos cinco anos em que está em vigor, ao menos 241 pessoas no Distrito Federal conseguiram a mudança e, agora, podem ser chamadas, também, em seus registros, da maneira como elas se sentem realmente representadas.
Os dados são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), que calculou 49 trocas no documento de identificação nos últimos dois anos.
Embaixadora da Parada do Orgulho LGBTQIAP , que ocorre amanhã em frente ao Congresso Nacional, a apresentadora de eventos Scarlety Pereira Furtado, 29 anos, colaborou com esses números. Em setembro de 2022, ela fez a retificação no 3º Ofício de Notas de Brasília, localizado no Setor Comercial Sul (SCS). Ela fez a troca do gênero masculino para o feminino. “Fiquei super emocionada porque é muito ruim quando você chega em um lugar com nome masculino e as pessoas fazem questão de falar seu nome (antigo) em alto e bom som”, desabafa.
A mudança de nome é maior do gênero masculino para o feminino. Foram de 18 para 21 trocas, entre 2021 e 2022. Um crescimento de 16,6% no período. Para a alteração em seu documento, Scarlety procurou ajuda no Centro de Referência Especializado da Assistência Social, na L2 Sul. Conhecido como Crea da Diversidade, por meio dele, a mulher trans conseguiu o custeio das taxas em forma de auxílio social.
Mesmo com a conquista, ela ainda enfrenta empecilhos no dia a dia, como ocorreu mês passado na Rodoviária do Plano Piloto, onde ela teve que mostrar o RG a um segurança para poder usar o banheiro feminino. “As que mais sofrem dentro desse segmento (público LGBTQIAP ) são as mulheres e homens trans, que somos um dos que são mais mortos todos os dias. Mais campanhas sobre isso seria importante para as pessoas mudarem o nome”, opina Scarlety.
Capacitação
O diretor de registro civil da Associação de Notários e Registradores do Brasil (Anoreg-BR) Devanir Garcia adianta que a instituição desenvolve o programa de capacitação Cartório Plural, a ser lançado ainda neste mês de julho — sem data programada. O objetivo da proposta, com divulgação de cartilhas e guias, é capacitar funcionários cartoriais de todo o país a lidarem de forma mais inclusiva com as demandas do público trans. “Esses materiais fornecem um passo a passo detalhado sobre o procedimento legal para a mudança de gênero, orientando sobre a documentação necessária, os trâmites a serem seguidos e os direitos garantidos por lei”, explica Garcia.
O diretor acredita que a facilidade em conseguir a troca de nome, respeitando o gênero com o qual elas se identificam, ajudará aquelas pessoas que ainda sofrem com a falta de reconhecimento a procurarem as instâncias competentes para a mudança. “Quanto mais a possibilidade da mudança ser feita em cartório, que é um procedimento mais simples, rápido e desburocratizado, maior a probabilidade das pessoas saberem que esse procedimento se tornou muito mais fácil do que era antigamente”, analisa o membro da Anoreg-BR.
Tragédia
A realidade de óbitos diários citada por Scarlety se reflete no levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), que coleta dados com base em notícias públicas nos meios de comunicação. A pesquisa, de 2022, traz que ao menos 256 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros foram vítimas de morte violenta no ano passado. Isso equivale a uma morte a cada 34 horas no país, segundo o GGB. São 242 homicídios e 14 suicídios no período. Dessas vítimas, 134 eram gays (52%) e 110 travestis ou transexuais (43%).
Enquanto a realidade ainda vitimiza esse grupo social, a presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil do DF (OAB-DF), Cíntia Cecílio, acredita que a decisão de 2018, do STF, garantiu o direito de troca de gênero e nome direto no cartório, trouxe liberdade e facilidade para a população transsexual. “Até então, era mais burocrático e era preciso usar meios judiciais para a retificação, tendo que comprovar que ter feito a cirurgia de redesignação sexual, além de laudos psiquiátricos e psicológicos”, explica a advogada.
Caso o interessado seja hipossuficiente, com poucos recursos econômicos, pode solicitar gratuidade dos custos da retificação. Cíntia menciona que a mudança de nome não é obrigatória nos casos de mudança de gênero nos documentos. A retificação pode ocorrer tanto do masculino para o feminino quanto ao contrário. De acordo com a jurista, no caso das pessoas não-binárias, que não se vêem pertencentes a um gênero em exclusivo, ainda não é possível fazer a retificação diretamente no cartório.
Alívio
Mari Delgado Ferreira, 24 anos, foi uma das pessoas trans do DF que entraram com o processo de retificação de nome e gênero, concluído em setembro do ano passado, conquista que ela considera um alívio. “Agora, eu posso chegar aos lugares e não ser chamada pelo antigo nome do registro civil. Mesmo com o nome social no documento, eu ainda era chamada pelo nome morto (anterior) em alguns lugares, até mesmo em órgãos públicos”, lembra Mari.
No entanto, a estudante de serviço social lembra que, após a retificação, é preciso ir atrás de mudar todos os outros documentos, o que ela garante ter feito. “Agora, ninguém mais tem acesso ao meu nome antigo, só o cartório e a Polícia Civil”, diz.
Para alívio maior de outras pessoas transsexuais, além de Mari, com todas as documentações e certidões apresentadas, a mudança de gênero pode ser concluída no mesmo dia. É o que afirma o presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, Gustavo Fiscarelli. Para ele, possibilitar que uma pessoa se identifique da forma como se sente é uma conquista deste segmento da população. “A alteração de nome e gênero é um procedimento rápido”, diz.
Fiscarelli alerta que algumas pessoas ainda acham que a alteração só pode ser feita pela via judicial, com apresentação de laudos médicos e cirurgia. Mas, desde 2018, o procedimento pode ser feito pela via extrajudicial, no cartório, de forma rápida e desburocratizada. “O que notamos no dia a dia é que a mudança de gênero é como uma espécie de renascimento, um reconhecimento daquilo que elas sempre foram”, avalia.
A produtora cultural Carol Ribeiro, 30, teve esse sentimento de identificação com o próprio gênero, que também é determinante para usar passaporte e resolver problemas com a polícia. “Tudo isso está certificado e me coloca em um lugar que me identifico no mundo. Deviam ter mais campanhas de orientação em relação à questão do nome também, porque faz toda a diferença para evitar evasão escolar das pessoas trans. Isso significa muito”, garante.
Para retificar o gênero em cartório, em setembro de 2020, a influência não veio de amigos ou de campanhas, mas da mãe. Segundo ela, a progenitora não a deixava sossegada enquanto a filha não fizesse a mudança de designação do gênero e nome em cartório. “Ela sabia que isso iria mudar a minha vida. Em 2019 e em 2020, até fiz campanha para a Câmara Legislativa do DF sobre respeito ao público LGBTQIAP . Então, acho que devem ter mais (campanhas), porque faz toda a diferença”, conclui.
Fonte: Correio Braziliense
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