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Artigo: Dilemas da privacidade na digitalização dos serviços registrais – Por Alexandre Gonçalves Kassama
23 DE JANEIRO DE 2023
Ao final do ano recém-findo, houve o término do trâmite legislativo da então Medida Provisória nº 1.085/2021 com a sua conversão na Lei 14.382/2022 [1] e ulterior apreciação dos vetos do Poder Executivo [2], produzindo-se um sistema registral encapsulado em um novo Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp).
Verifica-se que houve um balanceamento do legislador em relação à eficiência exigida pelo mercado e a privacidade, direito fundamental [3], o que se deu, a despeito da nova roupagem “tecnológica”, pelo reforço de uma categoria central do Direito Privado, do que abaixo se tratará.
Assim, já nos objetivos do Serp, elencados no artigo 3º, percebe-se que a grande preocupação foi permitir que, através desta nova estrutura, operada necessariamente por uma entidade de direito privado sem fins lucrativos [4], se torne possível padronizar os fluxos de serviços nos diversos cartórios de registro imobiliário e de títulos do país, outorgando a este novo ente a atribuição de intermediar toda a conexão entre serventias e entre estas e os usuários, a formar uma única rede — ou seria plataforma? [5] — de acesso, independentemente da situação de cada nódulo cartorial em si mesmo.
É pelo Serp que se fará o “atendimento remoto dos usuários, pela internet“. Também é através dele que se dará “a recepção e o envio de documentos e títulos, a expedição de certidões e a prestação de informações, em formato eletrônico, inclusive de forma centralizada, para distribuição posterior às serventias dos registros públicos competentes“, por fim, se encontrará nele o repositório dos documentos digitais, sendo encarregado do “armazenamento de documentos eletrônicos para dar suporte aos atos registrais“. Passa a ser o Serp a porta principal de entrada e saída de todo atendimento eletrônico de todas as serventias registrais do país, em formatação que impede a gestão de cada registrador sobre o modo de recepção e comunicação de seus atos em meio digital.
A estrutura vai ao encontro das propaladas intenções legislativas, pois, conforme declarado pelo então Ministério da Economia, permitir-se-ia “o fim da migração por serviços cartoriais, uma vez que estes se tornam acessíveis pela internet, com atendimento remoto e certidões digitais, e por interoperabilidade de seus registros” [6]. Segundo a doutrina, a centralização dos serviços no Serp, em especial através da formalização de uma “organização sistêmica (…) como uma figura bifronte: de um lado (…) um sistema que congrega todas as unidades registrais. De outro, (…) um conjunto de aplicações eletrônicas destinadas a servir aos usuários em geral de modo eficiente, moderno e eletrônico” [7] permitiria uma “melhoria no ambiente de negócios, especificamente no que diz respeito à redução da assimetria informacional, o que impacta diretamente nos custos transacionais, reduzindo-os” [8][9].
Ora, a finalidade assim buscada é clássica, desde as preliminares lições da “law and economics“, vez que um sistema de bens transparente, em que se saiba a cada momento qual a situação específica de cada bem em relação a seus possíveis gravames, permite a expansão do mercado de crédito [10]. A criação do Serp, nesse sentido, é mais um passo na longa história do registro de bens, especialmente imóveis, intrinsecamente ligada ao mercado creditício, a afastar a o mercado específico do chamado “Market for lemons” de Akerlof [11].
Essa novidade, contudo, em relação ao sistema cartorial, não pode ser entendida de forma inocente, pois desde muito a preocupação com a privacidade dos dados constantes dos registros públicos permeia também a atividade extrajudicial [12], e seria ingênuo acreditar que a formalização de tal estrutura não atrairia maiores riscos, sobretudo em tempos de algoritmos e processamentos em big data [13].
Carissa Véliz nos alerta sobre os perigos das comodidades digitais — sua rapidez, eficiência e suposta diminuição de custos — com um exemplo que não poderia ser mais adequado: “se um diário for mantido em papel em um cartório em uma cidade, isso o torna acessível a pesquisadores sérios, mas dificulta que atores desonestos cheguem até ele, ao contrário do que aconteceria se fosse publicado online e indexado em mecanismos de buscas. O quão acessível alguma coisa é, importa. Essa é a essência do direito ao esquecimento europeu” [14].
Ora, as organizações descentralizadas registrais dificultavam, em muito, a obtenção de dados de forma automatizada por meio de seu tratamento massificado e submetido à seleção da inteligência artificial. Enquanto cada cartório possuía o controle de sua porta de entrada e saída, haveria um custo ao menos considerável para qualquer player que visasse construir um repositório massificado de informações contidas nos bancos de acesso público. Com um repositório centralizado e disponível eletronicamente, inclusive com a possibilidade de visualização dos atos registrados sem efeitos de certidão, o que possivelmente acarretará uma redução de custos do acesso à informação, já que nada justificaria a criação uma nova forma de acesso sem que se diferenciasse, ao menos no custo, a informação obtida, o risco da construção de um repositório espelho privado de todas as informações registrais e seu tratamento massificado para fins que não necessariamente foram os imaginados na criação do repositório não são desprezíveis.
Assim, se a digitalização dos registros abre a estrutura registral para uma maior lubrificação das transações de mercado, acarreta riscos de, em relação aos mesmos players, permitir uma transparência de dados com efeitos nem sempre controláveis, tal qual o que se viu com o Decreto federal nº 10.046/2019, em relação às organizações governamentais, sobre o qual este mesmo espaço já teve a oportunidade de apontar os enormes riscos [15].
Ora, a mesma Carissa Véliz nos mostra que os riscos em relação à degradação do nível de liberdade de uma sociedade não podem ser produzidos sem uma imbricação entre os poderes públicos e os grandes players privados. Justamente a criação de um sistema registral de acesso eletrônico e transparente para o mercado em conjugação com as normas governamentais de compartilhamento geral de dados parecem traçar um cenário distópico [16].
Felizmente, a lei que criou o Serp trouxe também outros mecanismos para se evitar a devassa geral dos dados dos cidadãos em seu trato com os repositórios registrais.
Em específico, verifica-se que os notários não foram incluídos no Serp, o que aponta um discernimento do legislador. É que os notários sempre foram agentes de confiança das partes [17], tecendo o seu mister entre o privado e o público, mas com a possiblidade de se manter imparcial, quer em relação a um, quer em relação a outro, de modo a garantir o ato, seus efeitos e, para o que aqui toca, a privacidade de seus autores.
Não é fora de razão apontar que a ficha de firmas, e a consequente grafia das assinaturas lá lançadas, sempre foi tida como o documento mais sensível de guarda notarial, pois pela guarda ficha se garantia que a assinatura não circularia senão pelo seu autor, não dando assim margem a contrafações. Antes de se perder o costume notarial por meio das certidões digitais que reproduzem os atos de forma integral, os traslados dos atos lançados em livro de notas jamais circularam com as assinaturas das partes: era medida de privacidade sempre tomada pelos notários mesmo muito antes das preocupações atuais em relação à big data e algoritmização [18].
Nesse passo, o Serp é do mercado, em especial o de crédito. Para que este possa efetivar suas transações com maior eficiência e segurança, necessário um acesso transparente. Mas justamente para que essa transparência não transborde para a devassa geral dos negócios dos cidadãos, insta selecionar o que realmente deve ir a registro. E é para isso que foi pensado, pela mesma lei, o extrato, especialmente o notarial [19].
Os notários é que tradicionalmente formalizam os documentos a adentrar o registro, e mais uma vez, parece que o legislador foi sábio, pois não mais será necessário o encaminhamento do documento como um todo. Basta sua extratificação, selecionando aquilo que efetivamente pode ser do interesse de todos, daquilo que só interessa às próprias partes da transação [20]. Para que o registro eletrônico não transborde à possibilidade de devassa geral dos dados dos cidadãos, é interessante que o extrato previsto na mesma lei que o criou seja operacionalizado de modo a somente constar em registro aquilo que realmente seja necessário, resguardando todo o mais aos títulos que a ele dão base.
Esta construção, ademais, reforça uma categoria central no Direito Privado: a separação entre o direito obrigacional do direito real [21]. Ora, a própria criação do registro de imóveis enquanto tecnologia voltada a reduzir a opacidade dos bens a serem dados em garantia teve por detrás a criação de uma ciência dos direitos reais que permitisse a propriedade livre como direito paradigma e, a partir dela, outros direitos reais tão somente nos limites dos modelos previstos pelo legislador de forma centralizada. Desde os princípios da economia liberal, os bens só podem ter sua circulação restringida contra terceiros nos limites em que admitidas, tais restrições, pelo legislador. Essa a “tipicidade” dos direitos reais [22]. Em contrapartida, os negócios obrigacionais jamais apresentaram tal tipicidade, vigorando a maior liberdade de conformação de cada transação inter partes, não correndo o risco de se engessar a operação econômica com modelos previamente definidos. E são essas transações inter partes, em seus aspectos negociais-obrigacionais, que deixam de se submeter aos registros, através da técnica da extratificação, como meio de se resguardar, minimamente, a privacidade.
Resta questionar a possibilidade de entes privados específicos encaminharem também a registro os seus títulos por meio de extratos, hipótese em que a lei determina que sejam sempre acompanhados do contrato que lhes deu base [23]. Ora, essa necessária limitação da privacidade decorre do fato de que o registro não tem efeitos sanantes e seria mesmo temerário que todo e qualquer título pudesse ser inscrito sem antes passar por uma qualificação, o que, no caso dos extratos de títulos notariais, pelo notário se faz. De nada adiantaria ter um sistema de garantias transparente e de fácil acesso, se as situações jurídicas nele expostas não contiverem um mínimo de higidez e confiabilidade. Os títulos particulares, assim, devem continuar a ser qualificados integralmente pelos guardiões do fólio [24].
Em suma, ao que parece, deve-se fortalecer cada vez mais o encaminhamento por extratos ao registro imobiliário, sendo o notário a porta de entrada privilegiada de modo a garantir a privacidade.
*Alexandre Gonçalves Kassama é pesquisador do Legal Grounds Institute, tabelião de Notas em São Paulo (SP) e mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: ConJur
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