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Artigo: “Derrubada de vetos” à lei 14.382/2022 (Lei do SERP) – Patrimônio de afetação e adjudicação compulsória extrajudicial no caso de promessa de compra e venda – Por Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce
09 DE JANEIRO DE 2023
Resumo
- No caso de incorporação imobiliária, a averbação da construção extingue automaticamente o patrimônio de afetação, se estiver tiver sido apresentada a quitação da dívida do financiamento das obras ou declaração da inexistência desse financiamento (art. 31-E, § 1º, da lei 4.591/1964). A boa técnica da redação registral – que prestigia o princípio da continuidade registral -, recomenda que, no corpo desse ato de averbação, seja consignada expressamente esse efeito extintivo do patrimônio de afetação.
- Se, na hipótese descrita, o termo de quitação da dívida do financiamento só vier a se apresentado ao Registro de Imóveis tempos depois da averbação da construção, o cancelamento do patrimônio de averbação será formalizado por um ato de averbação específica, lançado na matrícula-mãe e nas matrículas-filhas. Para fins de emolumentos, porém, só será devida a cobrança por um ato em razão da presunção de ato único do art. 237-A da LRP.
- A ata notarial de especialização é documento obrigatório para o procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória (art. 216-B, § 1º, II, da LRP).
- A ata notarial de especialização destina-se a individualizar elementos de especialidade subjetiva – as partes envolvidas nos contratos preliminares ou nos de cessão – e de especialidade objetiva – identificação do imóvel, prova do pagamento do preço e caracterização da recusa da outra parte à celebração do contrato definitivo.
- Há aparente antinomia entre o inciso II e o inciso II, ambos do § 1º do art. 216-B da LRP. A melhor interpretação é a de que, na ata notarial de especialização, o notário noticiará os documentos apresentados pelo interessado comprovando a recusa da outra parte à celebração do contrato definitivo, como uma conversa de whatsapp ou, ainda que sozinha, uma declaração unilateral nesse sentido. O registrador de imóveis, ao receber o requerimento inicial com a ata notarial de especialização, promoverá a notificação de caracterização da mora da outra parte.
- A adjudicação compulsória extrajudicial independe de prévio registro da promessa de compra e venda, não havendo ofensa ao princípio da continuidade registral (art. 216-B, § 2º, LRP; Súmula nº 239/STJ; Enunciado nº 95 da I Jornada de Direito Civil).
- No procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, a apresentação de certidão de regularidade fiscal do alienante é dispensável.
- No caso de ausência de apresentação da certidão de regularidade fiscal do alienante, é recomendável que o registrador alerte expressamente os interessados sobre os riscos pertinentes (como o de declaração de ineficácia prevista no art. 185 do CTN). Esse alerta, porém, não deve ser consignado no ato de registro lançado na matrícula.
Introdução
A lei 14.382/2022 (Lei do SERP1) havia sido publicada em 22 de dezembro de 2022, com alguns dispositivos vetados pelo Sr. Presidente da República.
A propósito, como essa lei alterou substancialmente diversas questões em Direito Privado, publicamos o Livro “Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos” pela Editora Forense, esmiuçando cada uma das alterações.2
Todavia, no dia 5 de janeiro de 2022, foram publicados, “em repescagem legislativa”3, dispositivos da lei 14.382/2022 (Lei do SERP). Com isso, duas questões sofreram alterações:
- a) a extinção automática do patrimônio de afetação no caso de incorporação imobiliária (art. 31-E, §§ 1º e 3º, da lei 4.591/1964 – Lei de Incorporação Imobiliária); e
- b) a adjudicação compulsória extrajudicial no caso de promessa de compra e venda (art. 216-B, § 1º, III, e § 2º, da lei 6.015/1973 – Lei de Registros Públicos – LRP).
A obra publicada por nós segue plenamente útil, seja porque tratou desses dispositivos vetados, seja porque a Lei do SERP promoveu inúmeras outras inovações legislativas que se mantêm hígidas. Recomendamos, porém, que o leitor complemente a referida obra com o presente artigo apenas nessas duas questões.
No presente artigo, comentaremos apenas essas questões alcançadas pela derrubada do veto.
Extinção do patrimônio de afetação com a averbação da construção acompanhada do termo de quitação do financiamento da obra (art. 31-E, §§ 1º e 3º, da lei 4.591/1964)
DISPOSITIVO EM FOCO
“Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:
I – averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento;
II – revogação em razão de denúncia da incorporação, depois de restituídas aos adquirentes as quantias por eles pagas (art. 36), ou de outras hipóteses previstas em lei; e
III – liquidação deliberada pela assembleia geral nos termos do art. 31-F, § 1o.
- 1º Na hipótese prevista no inciso I do caput deste artigo, uma vez averbada a construção, o registro de cada contrato de compra e venda ou de promessa de venda, acompanhado do respectivo termo de quitação da instituição financiadora da construção, importará a extinção automática do patrimônio de afetação em relação à respectiva unidade, sem necessidade de averbação específica.
- 2º Por ocasião da extinção integral das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento e após a averbação da construção, a afetação das unidades não negociadas será cancelada mediante averbação, sem conteúdo financeiro, do respectivo termo de quitação na matrícula matriz do empreendimento ou nas respectivas matrículas das unidades imobiliárias eventualmente abertas.
- 3º A extinção no patrimônio de afetação nas hipóteses do inciso I do caput e do § 1º deste artigo não implica a extinção do regime de tributação instituído pelo art. 1º da lei 10.931, de 2 de agosto de 2004.
- 4º Após a denúncia da incorporação, proceder-se-á ao cancelamento do patrimônio de afetação, mediante o cumprimento das obrigações previstas neste artigo, no art. 34 desta lei e nas demais disposições legais”.
COMENTÁRIOS.
No caso de incorporação imobiliária, o incorporador pode facultativamente instituir o regime de patrimônio de afetação, na forma do art. 31-A e seguintes do Código Civil. Por esse regime, os adquirentes de “imóveis na planta” e os credores surgidos em razão do empreendimento terão uma maior garantia patrimonial para satisfazer seus créditos no caso de eventual malogro do incorporador.
Do ponto de vista registral, o regime de patrimônio de afetação é averbado na matrícula-mãe do imóvel, ou seja, na matrícula relativa ao terreno sujeito à incorporação imobiliária. Essa averbação é feita após o registro da incorporação imobiliária (art. 31-B, lei 4.591/1964).
Para o incorporador, o regime de patrimônio de afetação traz um benefício tributário: o incorporador será beneficiado com o direito de poder optar pelo Regime Especial de Tributação (RET), previsto nos arts. 1º ao 11-A da lei 10.931/2004.4 A ideia é oferecer um estímulo financeiro ao incorporador com o objetivo de estimular o regime de patrimônio de afetação, que, ao final, acaba sendo uma grande proteção aos consumidores adquirentes de imóveis “na planta”.
Com o fim da “incorporação imobiliária”, o regime de patrimônio de afetação também deve findar-se. Esse fim da incorporação dá-se em duas principais hipóteses: (1) a conclusão das obras; e (2) por ato de vontade, especificamente a revogação ou liquidação do patrimônio de afetação no caso de “quebra” do incorporador. O art. 31-E da Lei 4.591/64 trata dessas extinções do patrimônio de afetação. Nosso foco neste texto é a extinção do patrimônio de afetação no caso de conclusão das obras.
A razão de ser do patrimônio de afetação é proteger os adquirentes de imóveis “na planta” bem como os credores conexos, tendo em vista a dificuldade que eles teriam em executar seus créditos por conta da falta da existência física da construção.
Entre os credores conexos, a Lei de Incorporação Imobiliária dá um prestígio protetivo maior ao financiador da construção, ou seja, à instituição financeira que emprestou dinheiro para o custeio das obras. Ainda que esse financiador do empreendimento não tenha obtido nenhuma garantia real inscrita na matrícula do imóvel, a Lei de Incorporação Imobiliária defere-lhe uma proteção especial: o registrador de imóveis só poderá extinguir o patrimônio de afetação após prova de quitação da dívida desse financiamento das obras.
Em outras palavras, para cancelar o patrimônio de afetação, não basta averbar a construção; é preciso, também, que o incorporador apresente prova de quitação da dívida de financiamento das obras. Na hipótese de inexistir financiamento da obra, entendemos que bastará ao incorporador apresentar uma declaração nesse sentido. Essa é a inteligência do art. 31-E, I, da Lei de Incorporação Imobiliária:
“Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:
I – averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento;
(…)”.
Concluídas as obras, o regime de patrimônio de afetação perde sua razão de ser.
A Lei do SERP, após a derrubada de vetos, objetivou desburocratizar a formalização registral da extinção do patrimônio de afetação nessa hipótese. Pretendeu também deixar clara a subsistência do Regime Especial de Tributação – RET.
Sob o aspecto registral, a conclusão das obras é formalizada pela averbação da construção (devida após a emissão do “habite-se” pelo Poder Público). A questão, porém, é saber o seguinte: além da averbação da construção, há ou não necessidade de uma averbação específica da extinção do patrimônio de afetação?
A resposta depende se há ou não prova da quitação da dívida do financiamento da obra.
Se não houver prova de quitação da dívida perante o financiador das obras, não há extinção do patrimônio de afetação com a averbação da construção. Caberá ao incorporador, futuramente, apresentar prova da quitação da referida dívida, hipótese em que o registrador lançará, na matrícula-mãe e nas matrículas-filhas, o ato de averbação de cancelamento do patrimônio de afetação. Em termos de emolumentos, o registrador só poderá cobrar emolumentos por um único ato de averbação, tendo em vista a presunção de ato único para este fim na forma do art. 237-A da lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos).5 Sobre o tema, apontamos o seguinte em nosso livro “Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos”:
“Questão interessante e´ definir se o registrador poderá cobrar emolumentos por cada ato de averbação: o realizado na matrícula-mãe e os praticados nas matrículas-filhas. Entendemos que não. O registrador só poderá cobrar emolumentos por um único ato, tendo em vista a presunção de ato único previsto no art. 237-A da LRP para atos jurídicos-reais globais. Esclareça-se que o referido dispositivo menciona que a presunção de ato único para fins de emolumentos dá-se para atos jurídicos-reais globais ‘ate´ a conclusão das obras de infraestrutura ou da construção’, o que alcança, inclusive, os atos praticados por conta dessa averbação das obras. A preposição ‘ate´’ abrange o ‘inclusive’. Os atos de averbação da extinção do patrimônio de afetação por conta da conclusão das obras devem ser considerados como abrangidos pela presunção de ato único para fins de emolumentos do art. 237-A da LRP, ainda que cronologicamente eles sejam praticados depois da averbação da conclusão das obras”.6
Se, porém, houver a prova da quitação da dívida perante o financiador da obra ou se não houver financiamento das obras, a averbação da construção, por si só, já implica a extinção do patrimônio de afetação. Assim, não há necessidade da prática de nenhum ato de averbação específico para tanto. Trata-se de um efeito legal expressamente previsto no § 1º do art. 31-F, § 1º, da lei 4.591/1964. Sob a ótica da técnica de redação registral, recomendamos que o registrador expressamente consigne esse efeito legal no ato de averbação de cancelamento, visto que a matrícula deve ser redigida do modo mais didático ao leitor, que geralmente não é um especialista em direito imobiliário.
Na prática, o § 1º do art. 31-D da lei 4.591/1964 objetivou “reduzir custos”, dispensando o interessado de ter de pagar dois emolumentos: um pela averbação da construção e outro pela averbação. Todavia, conforme a nossa antes destacada interpretação do art. 237-A da LRP, esse problema de “duplicidade” de emolumentos não subsistia, tendo em vista a presunção de ato único para fins de emolumentos no referido dispositivo.
Assim, ao nosso sentir, o § 1º do art. 31-F da lei 4.591/1964 não possui muita utilidade prática. Além disso, o texto do referido dispositivo pecou do ponto de vista da técnica da redação registral, pois deveria ter sido expresso em exigir que o registrador consignasse expressamente o efeito do cancelamento do patrimônio de afetação.
Afinal de contas, é basilar que a estruturação redacional da matrícula precisa externar ao leitor a adequada continuidade dos fatos jurídicos inscritos. O patrimônio de afetação é averbado quando do seu nascimento; logo, é essencial que o seu cancelamento seja noticiado textualmente na matrícula posteriormente, ainda que dentro de um ato de averbação da construção. Fere regras básicas de redação registral deixar esse efeito extintivo implícito, fora do texto tabular.
Além disso, em uma manifestação pleonástica, o § 3º do art. 31-E da lei 4.591/1964 esclarece que, com a extinção do patrimônio de afetação em razão da conclusão das obras e da quitação da dívida do financiamento, o incorporador não perderá o benefício tributário do Regime Especial de Tributação (RET), previsto no art. 1º da lei 10.931/2004.
Trata-se de um pleonasmo, porque já era o entendimento prevalecente o de que o RET subsistiria mesmo após a extinção do patrimônio de afetação com a conclusão das obras e a quitação da dívida de financiamento. Sobre o tema, em nossa obra, já havíamos alertado para o fato de que o veto presidencial – que veio a ser derrubado pelo Congresso Nacional – ao referido dispositivo era inútil:
“O segundo veto disse respeito ao § 3.o do art. 31-E da Lei n. 4.591/1964, que estabelecia a subsistência do regime especial de tributação (RET) para a incorporação imobiliária. O RET e´ previsto nos arts. 1.º ao 11-A da lei 10.931/2004. (…)
Parece-nos que esse veto não traz qualquer repercussão prática, uma vez que o dispositivo vetado era pleonástico. Isso porque, a` luz do art. 11-A da lei 10.931/2004, o RET vigora até o pagamento integral do valor das vendas. O referido dispositivo não atrela o fim do RET ao cancelamento do patrimônio de afetação. A propósito do tema, esclarece Maciel da Silva Braz:
‘(…) em entendimento manifestado na Solução de Consulta DISIT/ SRRF07 n. 7.045/2014, o Fisco deu a entender que também estão sujeitas ao RET e a` alíquota de 4% (quatro por cento), as receitas decorrentes das vendas das unidades imobiliárias após extinção do patrimônio de afetação.”
Seja como for, o dispositivo analisado, apesar de pleonástico, tinha o mérito de impedir eventual interpretação em sentido contrário por parte dos órgãos fazendários”.7
Portanto, o veto presidencial em nada alterava a nossa interpretação sobre esse tema.
Adjudicação compulsória extrajudicial (art. 31-E, §§ 1º e 3º, da lei 4.591/1964)
DISPOSITIVO EM FOCO.
“Art. 216-B. Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, nos termos deste artigo.
- 1º São legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado, e o pedido deverá ser instruído com os seguintes documentos:
I – instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, quando for o caso;
II – prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos;
III – ata notarial lavrada por tabelião de notas da qual constem a identificação do imóvel, o nome e a qualificação do promitente comprador ou de seus sucessores constantes do contrato de promessa, a prova do pagamento do respectivo preço e da caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade;
IV – certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação;
V – comprovante de pagamento do respectivo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI);
VI – procuração com poderes específicos.
- 2º O deferimento da adjudicação independe de prévio registro dos instrumentos de promessa de compra e venda ou de cessão e da comprovação da regularidade fiscal do promitente vendedor.
- 3º À vista dos documentos a que se refere o § 1º deste artigo, o oficial do registro de imóveis da circunscrição onde se situa o imóvel procederá ao registro do domínio em nome do promitente comprador, servindo de título a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou o instrumento que comprove a sucessão”.
COMENTÁRIOS.
Com a derrubada do veto presidencial, três ajustes foram feitos no procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, a seguir resumidos:
- a) Torna-se obrigatória, entre os documentos instrutórios do requerimento, o que nós chamamos de “ata notarial de especialização”.
- b) Esclarece-se que é dispensável o prévio registro da promessa de compra e venda.
- c) Dispensa-se a comprovação de regularidade fiscal do promitente vendedor.
Antes de comentá-los, convém relembrar que o art. 216-B da LRP nasceu com o objetivo de atacar um sério entrave à regularização fundiária: a burocracia existente para a obtenção do contrato definitivo pelas partes ou cessionários de promessas de compra e venda.
As dificuldades e a demora com o procedimento judicial de adjudicação compulsória desestimulavam as partes a regularizarem sua situação jurídica mesmo após o pagamento integral do preço pactuado nas promessas de compra e venda. O resultado sempre foi a proliferação de contratos de cessão de direitos decorrentes de promessas de compra e venda a aumentar a dificuldade de regularização fundiária.
Assim, o art. 216-B da LRP permite a qualquer das partes valer-se de um procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória perante o competente Registro de Imóveis. Aprofundamos o procedimento em nosso livro8. Neste texto, ater-nos-emos aos três aspectos supracitados e decorrentes da derrubada dos vetos presidenciais em pauta.
Um dos documentos obrigatórios para o procedimento extrajudicial é o que designamos de ata notarial de especialização (art. 216-B, § 1º, III, da LRP). Designamos assim, porque essa ata notarial destina-se a individualizar elementos de especialidade subjetiva – as partes envolvidas nos contratos preliminares ou nos de cessão – e de especialidade objetiva – identificação do imóvel, prova do pagamento do preço e caracterização da recusa da outra parte à celebração do contrato definitivo. O objetivo é que o Tabelião de Notas ateste a presença dos dados juridicamente relevantes para o fato jurídico almejado, qual seja a adjudicação compulsória extrajudicial.
Cabe um esclarecimento em relação à exigência de que a ata notarial de especialização contenha a “caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade” (art. 216-B, § 1º, III, da LRP). Essa previsão guarda certo conflito com o inciso II do referido preceito. Este último inciso exige, ao lado da ata notarial de especialização, um outro documento, a saber: a “prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos”.
A redação legal não foi feliz. Dá ensejo a interpretações diferentes, no nosso entender, o que merece ser detalhado.
De um lado, pode-se entender que o interessado teria de, em primeiro lugar, pleitear, perante o Registro de Imóveis, a notificação extrajudicial comprobatória do inadimplemento. Em seguida, o interessado dirigir-se-ia ao Tabelião de Notas para a lavratura da ata notarial de especialização, na qual o notário consignaria a prova do inadimplemento em razão do silêncio da outra parte diante da retromencionada notificação extrajudicial. Posteriormente, o interessado voltaria ao Cartório de Registro de Imóveis para apresentar o requerimento de adjudicação extrajudicial com todos os documentos exigidos pelo art. 216-B da LRP. Essa interpretação é manifestamente descabida, porque submete o interessado a um “ping-pong burocrático”, de vaivém entre as serventias que, geralmente, estão situadas em locais diferentes, o que contraria o espírito desburocratizante da Lei do SERP. Rejeitamos, pois, essa primeira interpretação.
De outro lado, pode-se entender que a ata notarial de especialização é lavrada antes de qualquer procedimento no Cartório Registro de Imóveis. O notário consignará nela as provas apresentadas pelo interessado acerca da recusa da outra parte em celebrar o contrato definitivo, como uma conversa de whatsapp ou até mesmo uma declaração unilateral do próprio interessado. Ainda que o interessado não tenha provas documentais, o notário deverá satisfazer-se com a declaração unilateral dele, a ser devidamente consignada na ata notarial de especialização. Na nossa opinião doutrinária, é sob essa ótica que se deve entender a exigência do inciso III do § 1º do art. 216-B da LRP no sentido de que a ata notarial de especialização deve conter a “caracterização do inadimplemento da obrigação de outorgar ou receber o título de propriedade”.
Posteriormente, o interessado dirigir-se-ia ao Cartório de Registro de Imóveis para requerer a adjudicação compulsória, apresentando os documentos indicados nos incisos I e III a VI do § 1º do art. 216-B da LRP e requerendo a realização da notificação extrajudicial comprobatória da mora prevista no inciso II do § 1º do art. 216-B da LRP.
O registrador, então, fará a notificação extrajudicial da outra parte para que este, no prazo de 15 dias, celebre o contrato definitivo, sob pena de ultimação do procedimento de adjudicação compulsória. Em havendo inércia da outra parte, o registrador concluirá o procedimento, registrando, na matrícula, a transmissão definitiva da propriedade em substituição ao contrato definitivo de compra e venda.
Como está claro, preferimos essa última interpretação, porque não submete o interessado a um injustificado ping-pong irracional entre serventias extrajudiciais, além de estar de acordo com o espírito de redução de burocracias das novas normas emergentes em nosso País nos últimos anos.
Além dessa questão relativa à ata notarial de especialização, o Congresso Nacional derrubou o veto ao § 2º do art. 216-B da LRP com o objetivo de eliminar empecilhos burocráticos ao procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória.
A eliminação do primeiro empecilho deu-se deixando claro que a adjudicação compulsória extrajudicial não depende de prévio registro da promessa de compra e venda. Trata-se de esclarecimento legal importante para evitar interpretações indevidas de que o princípio da continuidade registral exigiria esse prévio registro. A bem da verdade, esse esclarecimento legal é, de certa maneira, pleonástico, porque a jurisprudência já era pacificada nesse sentido. A propósito, vejamos o que, a quatro mãos, havíamos escrito em nossa obra:
“O fundamento legal para tal conclusão esta´ no art. 464 do Código Civil, segundo o qual, ‘esgotado o prazo, podera´ o juiz, a pedido do interessado, suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar, salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação’. Em certa medida, esse comando legal acabou por positivar a ideia que constava da Sumula n. 239 do Superior Tribunal de Justiça: ‘O direito a` adjudicação compulsória na~o se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imo´veis’. A esse propósito, destacamos o Enunciado n. 95, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que traduz a posição consolidada entre os civilistas: ‘o direito a` adjudicação compulsória (art. 1.418 do novo Código Civil), quando exercido em face do promitente vendedor, na~o se condiciona ao registro da promessa de compra e venda no cartório de registro imobilia´ria (Su´mula n. 239 do STJ)’. A afirmação passa a valer também para a adjudicação compulsória extrajudicial, em nosso entender”.9
A remoção de outro empecilho burocrático removido ocorreu quando o § 2º do art. 216-B da LRP textualmente dispensa a comprovação de regularidade fiscal do promitente comprador como condição para o registro da transmissão definitiva da propriedade. De fato, esses tipos de condicionamento representam criticáveis formas de coerção indireta de que se vale o Fisco para cobrar tributos. Muitas situações imobiliárias ficam sujeitas à informalidade, porque um efeito de Direito Civil – a transmissão da propriedade – fica dependente de uma questão afeta à cobrança tributária.
Porém, não se pode negar que a informalidade imobiliária gera muito mais prejuízos ao interesse público, acarretando problemas sociais e estatais. Mais eficiente seria que o legislador, no lugar de impedir o aperfeiçoamento de efeitos de Direito Civil, lançasse mão de outras ferramentas mais adequadas à cobrança do crédito tributário, como a presunção de fraude à execução prevista no art. 185 do Código Tributário Nacional (CTN). A própria constitucionalidade dessas formas de coerção indireta para a cobrança de tributos é discutível.
Seja como for, o fato é que, em se tratando de adjudicação compulsória extrajudicial, o registrador não poderá exigir a apresentação de certidão de regularidade fiscal. O § 2º do art. 216-B da LRP prevalece em relação a leis especiais. Assim, por exemplo, na via desse procedimento, não será aplicável o art. 47 da lei 8.212/1991, que, no caso de transferência de imóveis pertencentes.
Todavia, é fundamental que o promitente comprador tenha ciência de que a aquisição da propriedade poderá vir a ser declarada ineficaz perante o Fisco em razão do art. 185 do CTN.10 Por esse motivo, entendemos que cabe ao registrador de imóveis alertar o promitente comprador disso, caso não tenha sido apresentada certidão de regularidade fiscal do alienante.
Convém que esse alerta de eventual ineficácia seja expressamente consignado pelo registrador ao longo do procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória. Não é conveniente, porém, que esse alerta seja consignado na matrícula, seja porque a matrícula não deve ser poluída por alertas meramente abstratos e potenciais, seja porque o art. 216-B da LRP nada exige nesse sentido.
Autores:
Carlos Eduardo Elias de Oliveira é professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral na Universidade de Brasília e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado/parecerista. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Doutor, mestre e bacharel em Direito pela UnB.
Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Fonte: Migalhas
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