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Artigo: Cláusula de (in) fidelidade no pacto antenupcial – Por Ciro Mendes Freitas
21 DE MARçO DE 2023
O filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman em sua obra “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos” afirma que até mesmo a afinidade está se tornando algo pouco comum em uma sociedade de extrema descartabilidade. O desafio de relacionar-se em meio à liquidez e fragilidade do afeto tem fomentado uma onda de contratualização no direito das famílias.
Subliminarmente, parece que as cláusulas existenciais funcionam como uma espécie de aquário, onde a liquidez dos afetos é guardada e não se esvai. Entretanto, na prática, embora haja possibilidades jurídicas de contratualização antenupcial, seja de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, nenhuma cláusula é capaz de impedir o fim da relação, nem mesmo a cláusula de (in) fidelidade.
- CONCEITO E POSSIBILIDADE JURÍDICA
É o contrato feito entre os noivos com o propósito de estabelecer o regime de bens que vigorará após o casamento. O pacto antenupcial somente é necessário caso os noivos optem por um regime de bens diferente do regime legal, que é o regime da comunhão parcial de bens ou, em alguns casos especiais, como é o caso do regime da separação obrigatória de bens.
O Artigo 1.653 do Código Civil afirma que: “É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento.”
A nulidade do pacto está vinculada ao ato registral em Cartório, via escritura pública e sua eficácia ao casamento civil posterior ao pacto. Os artigos 1.653 a 1.657 do Código Civil estipulam todo regramento legal do pacto, havendo inclusive a possibilidade de pacto pós-nupcial que é o caso, por exemplo, da mudança de regime de bens.
Vale dizer que além das questões patrimoniais, também é possível dispor sobre questões extrapatrimoniais ou existenciais no pacto antenupcial, podendo ser utilizado como uma espécie de código de conduta moral entre o casal.
- POSSIBILIDADES EXTRAPATRIMONIAIS DO PACTO ANTENUPCIAL
A maioria dos noivos quando procuram um Cartório de Registro Civil para iniciar o processo de habilitação de casamento, sequer tem noção da importância da escolha racional e consciente do regime de bens. Em alguns casos, a falta de informação é o problema, tendo em vista a ausência de conhecimento técnico dos funcionários dos cartórios extrajudiciais, em outros a questão é econômica, pois o casal prefere a opção que não exigirá um custo maior, como é o caso da lavratura da escritura pública de pacto antenupcial.
Dessa forma, acaba-se optando pelo regime legal (comunhão parcial de bens) sem ter a mínima ideia das possibilidades do pacto antenupcial, seja no que diz respeito às questões patrimoniais ou extrapatrimoniais. E aqui, percebe-se como é fundamental um planejamento matrimonial bem feito.
O Artigo 1.639 do Código Civil estabelece que: “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.”
Apesar de parecer que o artigo 1.639 estabeleceu liberdade plena de disposição no pacto antenupcial, não é bem assim que funciona. Existem limitações para tais disposições, que partem do seguinte questionamento: “o estabelecido no pacto antenupcial fere a ordem pública?”.
O que nos leva a outro questionamento: “o que fera a ordem pública?” Aqui, percebemos uma lacuna interpretativa, considerando que o que fere e afronta a ordem pública na cultura e vivência de um casal, pode não ser o mesmo em relação a outro. A discussão se estende a dois tópicos centrais: autonomia privada x intervenção mínima do Estado.
Por exemplo, estabelecer em pacto antenupcial que o casal poderá ter uma “relação aberta”, ou seja, que não têm o dever de fidelidade, fere a ordem pública? Deve-se respeitar essa particularidade e intimidade? Cada casal pode fazer o seu código particular? Essas questões nos remetem a uma compreensão mais ampla e profunda sobre o sexo e sexualidade e qual o limite entre público e privado. O Direito de Família contemporâneo exige de nós esta reflexão e compreensão.
Rodrigo da Cunha Pereira, presidente nacional do IBDFAM afirma que: “a sexualidade, que tradicionalmente estava no campo da moral social, foi privatizada e hoje pertence à vida íntima de cada um. Por isso, inclusive, é importante e conveniente deixar claro as regras de uma convivência conjugal. Falar e escrever sobre isso, por mais incômodo que seja, significa em última análise cuidar do amor. A livre expressão do amor e do afeto só se tornou possível porque está sustentada por um novo discurso sobre a sexualidade.”
A afirmação do presidente nacional do IBDFAM faz tanto sentido que nos últimos meses a mídia internacional divulgou cláusulas de pactos antenupciais de casais famosos, cujo conteúdo remete especificamente a dita “privatização da vida íntima”, como por exemplo:
- A atriz Jennifer Lopes e o ator Bem Affleck, segundo notícias de jornais, estabeleceram em seu pacto antenupcial a obrigação de relações sexuais de qualidade, quatro vezes por semana;
- Catherine Zeta-Jones e Michael Douglas condicionaram o casamento a tratamento do noivo de um distúrbio ninfomaníaco, sob pena de multa milionária;
- Nicole Kidman estabeleceu em seu pacto pré-nupcial que o cantor Keth Urban receberia um prêmio de US$ 600 mil por ano se ele se mantivesse livre de drogas ilícitas e não tivesse relação com outras mulheres;
- Mark Zuckerberg, conhecido como um workaholic, estabeleceu em seu pacto com Priscilla Chan que, além de fazer sexo no mínimo uma vez por semana, ele deveria ter pelo menos cem minutos de tempo dedicado a ela;
- Justin Timberlake e Jessica Biel estabeleceram multa em caso de traição.
- Na Inglaterra, a rainha Elizabeth II exigiu que William e Kate Middleton assinassem um pacto antenupcial em que ela perderia o título de duquesa, o trono, a casa e a guarda dos filhos, e seria impedida de falar com a mídia, em caso de divórcio.
- QUAIS SÃO AS CLÁUSULAS EXISTENCIAIS ESTABELECIDAS COM MAIS FREQUÊNCIA NOS PACTOS ANTENUPCIAIS?
O mais comum é que haja previsões a respeito da divisão de tarefas domésticas, privacidade em redes sociais, indenização pela infidelidade, sobre técnicas de reprodução assistida heteróloga, educação religiosa dos filhos e se um dos cônjuges/companheiros poderá, ou não, ser curador do outro em caso de incapacidade absoluta.
Lembrando que tais cláusulas poderão ser estabelecidas, caso não ultrapassem a barreira da dignidade humana e não afrontarem a ordem pública.
- E A CLÁUSULA PENAL? É POSSÍVEL ESTABELECER MULTA EM CASO DE INFIDELIDADE NO BRASIL?
A previsão da cláusula penal por traição no pacto antenupcial consiste na exteriorização da autonomia privada das partes e do direito de família mínimo que preceitua a mínima intervenção estatal na esfera privada, além de trazer benefícios preventivos e reforçadores da confiança entre os nubentes.
Em janeiro de 2023 um casal de Belo Horizonte resolveu fazer um pacto antenupcial uma cláusula de multa de R$ 180 mil em caso de traição. O documento foi validado pela juíza Maria Luiza de Andrade Rangel Pires, titular da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte, que autorizou a inclusão da cláusula de multa no contrato.
Segundo a juíza Maria Luiza Rangel Pires, embora para muitos soe estranha essa cláusula no contrato – porque já se inicia uma relação pontuada na desconfiança mútua -, essa decisão é fruto da liberdade que eles têm de regular como vai se dar a relação deles, uma vez que o dever de fidelidade já está previsto no Código Civil Brasileiro.
A magistrada ainda ressaltou que os casais têm autonomia para decidir o conteúdo do pacto antenupcial, desde que não violem os princípios da dignidade humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar.
Para a juíza, o Poder Público tem que intervir o mínimo possível na esfera privada, de modo que o pacto antenupcial é definitivamente para o casal escolher o que melhor se adequa para a vida que escolheram levar a dois.
- CONCLUSÃO
A decisão da juíza da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte/MG revela que, o que para alguns parecia ser uma tendência jurídica, é absolutamente possível e viável segundo o Código Civil Brasileiro. E muito embora haja interesse Estatal sobre a vida privada, tal interesse não pode se sobrepor a autonomia privada, principalmente quando está em pauta o regramento que um casal livremente decide estabelecer, sem ferir os princípios constitucionais e ainda resguardando o dever de fidelidade previsto no Artigo 1.566 do Código Civil.
Como bem afirmou a saudosa Marília Mendonça: “Iêêê, infiel. Eu quero ver você morar num motel. Estou te expulsando do meu coração. Assuma as consequências dessa traição (…)”
- REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
*Ciro Mendes Freitas é advogado, pós-graduado em Direito das Famílias e Sucessões pelo IBDFAM Educacional, vice-presidente do IBDFAM Norte e Noroeste Fluminense, vice-presidente da Comissão de Família e Tecnologia do IBDFAM/RJ e presidente da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da 12ª Subseção da OAB/RJ.
Fonte: IBDFAM
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