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Artigo – Certidão de uso e ocupação do solo nos processos de licenciamento ambiental
12 DE DEZEMBRO DE 2022
Este artigo tem como premissa trazer à baila a preocupação com a observância dos princípios constitucionais da prevenção e da precaução que norteiam o Direito Ambiental, considerando que o meio ambiente é um bem comum de todos e de maior preponderância sobre qualquer outro interesse particular, haja vista serem os seus recursos naturais imprescindíveis à existência de toda forma de vida no planeta Terra.
Em que pese a sua essencialidade, o meio ambiente corre iminente risco de ser negligenciado, caso os órgãos executores das políticas nacionais, estaduais e municipais no Brasil carreiem, no sentindo de interpretação equivocada, acerca da não exigência da certidão de uso e ocupação de solo para a inauguração dos processos de licenciamento ambiental, em obediência a um dispositivo trazido na Lei de Liberdade Econômica nº 13.874, de 2019.
O meio ambiente é patrimônio público que deve ser assegurado e protegido para uso da coletividade. Já a utilização de seus recursos naturais deve ser autorizada por meio do licenciamento ambiental, sendo esta uma ação típica e indelegável do Poder Executivo, e considerada importante instrumento de gestão ambiental. É por meio do licenciamento que se exerce o controle das ações humanas interferentes no meio ambiente, compatibilizando o desenvolvimento econômico com a preservação ecológica.
Esse tipo de licenciamento é diferente dos tradicionais porque possui um caráter complexo e formado por várias etapas, nas quais intervêm múltiplos agentes públicos, visando à concessão de um instrumento preventivo de tutela do meio ambiente.
Externado como um verdadeiro encadeamento de atos administrativos, o licenciamento ambiental tem a finalidade precípua de detectar, monitorar, mitigar e buscar eliminar a ocorrência de danosidade ambiental, razão pela qual ostenta o status de ato administrativo sui generis, mas, ao mesmo tempo, precário, porque pode ser cancelado ou anulado, se descumpridas as condicionantes impostas.
Por seu turno, a Política Nacional do Meio Ambiente, criada pela Lei Federal nº 6.938, de 1981, estabeleceu critérios e padrões de qualidade ambiental e de normas no tocante ao uso e manejo dos recursos naturais, bem como estabeleceu que as suas diretrizes fossem formuladas em normas e planos destinados a orientar a ação dos governos da União, dos estados e dos municípios.
Essa estrutura legal tem o intuito de harmonizar a realização das atividades e, inclusive, como confirmação desse propósito, instituiu o Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), tendo no bojo do seu organograma o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), como órgão consultivo e deliberativo que tem, entre outras finalidades, a de deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões que assegurem um meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida, sendo o licenciamento ambiental um procedimento intimamente atrelado.
O licenciamento ambiental é um dos procedimentos no qual se externa a execução da Política Nacional de Meio Ambiente, tendo no seu artigo 10 estabelecido que as atividades ou empreendimentos capazes, sob qualquer forma, de causar impacto ao meio ambiente, ou que utilizassem recursos ambientais, dependeriam de prévio licenciamento ambiental, senão vejamos:
“Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental.”
Ou seja, nenhuma atividade pode ou deve iniciar-se se não houver obtido o necessário licenciamento ambiental ou sua dispensa, que deve ser outorgado por órgão competente, sob pena das implicações legais e administrativas. Outrossim, o meio ambiente e seus recursos naturais são tutelados por direito constitucional e fundamental, em virtude da indisponibilidade e da imprescindibilidade para a vida das presentes e futuras gerações.
Por sua vez, o licenciamento ambiental é o instrumento que oportuniza ao órgão ambiental realizar a aferição da viabilidade de localização, instalação, ampliação e operação de empreendimentos e atividades consideradas efetivas ou potencialmente poluidoras, ou que possam causar degradação ao meio ambiente.
Ponderando a magnanimidade desse instrumento, notadamente para a proteção ambiental e a qualidade de vida, à inauguração do processo administrativo ambiental se faz necessária a comprovação da viabilidade locacional do imóvel onde se pretende licenciar determinada atividade. Essa atenção se faz precisa para evitar intervenções proibidas por lei ou danosas ao meio ambiente, razão pela qual, no Brasil, originalmente se adotou o sistema trifásico de licenciamento.
Assim, a licença prévia (LP) atesta a viabilidade ambiental da atividade ou empreendimento que se pretende licenciar, contudo não autoriza, por si só, qualquer intervenção na área em questão. Presta-se, tão somente, a receber e analisar o planejamento proposto para, ao final, decidir pela aprovação ou não da localização e concepção, além de estabelecer os requisitos e condicionantes mínimos a serem atendidos nas fases subsequentes de implementação. É justamente nessa oportunidade que necessariamente deve ser apresentada a certidão de uso e ocupação do solo.
Apesar disso, muitas vezes o administrado inicia o processo de licenciamento ambiental quando o empreendimento já se encontra instalado ou operando. Por essa razão, é compelido a levar aos autos todos os documentos que seriam solicitados nas fases de licença prévia, de instalação e de operação, a despeito do habite-se e dos alvarás de construção e de funcionamento. Por essa ótica, poderia levar à conclusão de se ter superado a necessidade da apresentação da certidão de uso e ocupação do solo, visto que os documentos supracitados, uma vez concedidos, pressupõem a regularidade locacional da atividade.
Contudo, se faz imperioso o respeito ao Princípio da Prevenção (risco certo), e a emissão da licença ou autorização ambiental deve ser pautada na certeza desse risco, condição para poder se determinar medidas e condicionantes capazes de evitar e mitigar os efeitos e resultados do exercício da atividade em licenciamento.
Dessarte, há a necessidade de informação expressa no que se refere à viabilidade locacional do imóvel onde será concedido licenciamento ambiental, e que deve estar de acordo com o Plano Diretor do respectivo município, que somente a certidão de uso e ocupação do solo tem o poder de atestar. Assim, igualmente aos demais documentos exigidos no checklist, essa certidão deve ser apresentada pelo interessado. Por conseguinte, não cabe ao órgão ambiental o ônus da prova da viabilidade locacional do imóvel, onde se pretende o licenciamento ambiental para a realização de instalação ou de operação de determinada atividade.
Não obstante, a Lei nº 13.874, de 2019, conhecida como a Lei de Liberdade Econômica, reza em seu artigo terceiro que é direito de toda pessoa, física ou jurídica, não ser compelido a apresentar para a administração pública, direta ou indireta, certidão que tenha havido previsão legal.
Sem embargo, insta destacar que a certidão de uso e ocupação do solo é uma declaração fornecida pelo município, a qual contém informações imprescindíveis ao processo administrativo de licenciamento ambiental. A mencionada certidão declara a permissão ou não de diferentes atividades se localizarem em áreas adequadas dentro de um município. É, portanto, um documento que equilibra o uso do solo ao auxiliar diretamente na organização do território municipal.
Independente de não ser um documento que permita a construção ou início de atividade, é extremamente importante sua apresentação para a ordenação do território. E é nesse contexto que se verifica a sustentabilidade do município, sua qualidade de vida, a acessibilidade, seu desenvolvimento, seu disciplinamento, levando em consideração o tratamento específico para cada área com características diferentes — ecológicas econômicas e sociais — com componentes complexos que se inter-relacionam e interagem.
A certidão de uso e ocupação do solo é a expressão do zoneamento de um município para a gestão dos recursos naturais, promoção do uso do solo em função de sua capacidade, prevenção dos impactos negativos e a coibição ou reversão dos processos de degradação atual.
Diante dessas particularidades, a apontada certidão se faz crucial para a inauguração do procedimento de licenciamento ambiental. Ora, se “o licenciamento é o processo por meio do qual se autoriza a construção, a instalação, a ampliação e o funcionamento de empreendimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental”, para que seja emitida a respectiva licença ambiental é relevante que a pretensão esteja de acordo com o zoneamento municipal, expresso através da respectiva certidão de uso e ocupação do solo.
Conquanto seja um documento de natureza declaratória, sua exigência é um ato fundamental, em razão do seu conteúdo e função, sobretudo por sua especialidade de constar o estado fático ou legal para a tomada de decisão que cria, modifica ou extingue situações jurídicas, como as licenças ambientais e permissões, cujo documento é o meio de verificar se o pleito está conforme sua utilização em atenção ao correspondente zoneamento municipal.
Destaque-se que no estado da Paraíba, por exemplo, a exigência dessa certidão se apresenta no Decreto Estadual nº 41.560, de 27 de agosto de 2021:
“Art. 10. O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas:
(…)
- 1º. No procedimento de licenciamento ambiental deverá constar, obrigatoriamente, documento oficial da Prefeitura Municipal, declarando que o local e o tipo de empreendimento ou atividade estão em conformidade com a legislação aplicável ao uso e ocupação do solo e, quando for o caso, a autorização para supressão de vegetação e a outorga para o uso da água, emitidas pelos órgãos competentes.”
Essa postura normativa estadual revela a preocupação e o respeito com a organização e a qualidade de vida do município onde será realizada a obra ou atividade, bem como a atenção à normativa ambiental e urbanística.
E mesmo que haja entendimento por parte da doutrina da não obrigatoriedade desse documento ou até mesmo em lei ordinária, data vênia, afronta a aplicabilidade dos princípios ambientais como o da prevenção, da conservação e do desenvolvimento sustentável, consequentemente, ofende a todo o sistema de comandos.
Ademais, a regulação contida no zoneamento, devidamente expressa na certidão de uso e ocupação do solo, coaduna com o delineamento do direito de propriedade ao reconhecer o elemento fundamental da função social da propriedade e da contingência da convivência urbana. Isto significa dizer que há a preservação do direito de propriedade, mas limita o que pode ser explorado na área, em virtude das características locais, explícitas no zoneamento.
De mais a mais, não resta qualquer dúvida quanto à natureza jurídica da certidão de uso e ocupação do solo e da verossimilhança que esta guarda com os demais documentos, projetos e estudos que são inerentes e indispensáveis à recepção, à análise e à aprovação do licenciamento ambiental.
Igualmente, o Conama, órgão colegiado consultivo e deliberativo do Sisnama, assim expressamente determinado pela Política Nacional do Meio Ambiente, que foi recepcionada na sua integralidade pela Constituição Federal de 1988.
Acrescente-se, ainda, o §2º do artigo 2º da Resolução Conama nº 237, de 19 de dezembro de 1997, que trata especificamente dos procedimentos de licenciamento ambiental, aponta que cabe ao órgão ambiental competente definir os critérios de exigibilidade, detalhamento e complementação, levando em consideração as especificidades e os riscos ambientais.
O Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece diretamente a base de constitucionalidade às Resoluções do Conama, conforme se verifica a lição de Paulo de Bessa Antunes (revista eletrônica Consultor Jurídico, 22 de maio de 2022, 12h11)
“É interessante consignar que o STF, em matéria ambiental, caminhou no sentido de reconhecer base diretamente constitucional às resoluções do Conama, haja vista que elas tratam de direitos fundamentais, como se deu no caso da ADI 4.615, Relator Ministro Roberto Barroso, na qual foi decidido que: ‘[a] legislação federal, retirando sua força de validade diretamente da Constituição Federal, permitiu que os Estados-membros estabelecessem procedimentos simplificados para as atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental'”
Nessa senda, muito embora não restem dúvidas acerca da imprescindibilidade da certidão de uso e ocupação do solo na inauguração do processo de licenciamento ambiental, bem como o fato de a Resolução Conama nº 237, de 1997, e as demais, por ora, estarem sob o resguardo da Suprema Corte, a preocupação tratada no presente tema deve ser constantemente levantada.
A existência de lei ordinária em vigor interpretada de forma isolada, por parte de operadores do direito, que se atêm tão somente à letra fria, trata com indiferença o Direito Ambiental ao rechaçar suas peculiaridades como a necessária aplicação conjunta da lei com o arcabouço técnico, não olvidando o respeito aos respectivos princípios.
No afã de aplicar dispositivo que está positivado, tão somente pelo fato da legalidade estrita, conduzirá a um resultado indesejado, uma vez que fatalmente imputará à administração pública, executora da Política de Meio Ambiente, o legado de concorrer com seus administrados na prática de crimes e infrações ambientais.
E essas condutas delitivas serão verificadas ao recepcionar e licenciar atividades efetivas ou potencialmente poluidoras, em solo não edificável, assim determinado pela lei de criação do Plano Diretor dos municípios, pelo fato da não observância de informações de ordem pública, que são trazidas na certidão de uso e ocupação do solo.
Yanara Pessoa Leal é advogada da Superintendência de Administração do Meio Ambiente (Sudema), membro da Comissão de Estudos e Impactos Ambientais e da Câmara de Compensação Ambiental da Sudema, do Fórum Estadual de Mudanças Climáticas da Paraíba e da Comissão de Direito Ambiental OAB/PB e autora do trabalho “Contratos Inteligentes em Blockchain como Instrumento de Gestão na Prestação e Pagamento por Serviços Ambientais e Criptomoeda” (do livro “Paisagem Legal: Homem, Sociedade e Meio Ambiente” (Uniesp, 2021).
Rosangela Pereira de Lima é advogada, membro da Comissão de Direito Ambiental OAB-PB e do Conselho Municipal de Meio Ambiente do Município de Bayeux (PB), ex-secretária de Meio Ambiente de Bayeux, ex-presidente do Condma, ex-secretária-executiva do Procom municipal, ex-procuradora da PGM do município de Bayeux e ex-assessora Jurídica da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de João Pessoa (Semam).
Vescijudith Fernandes Moreira é advogada, doutora em Direito Ambiental, pesquisadora bolsista do Programa Semiárido Sustentável e Inovador (Insa/MCTI), secretária-geral da Comissão de Direito Ambiental da OAB-PB, membro do Conselho Municipal de Meio Ambiente do Município de Bayeux (PB), ex-secretária municipal do Meio Ambiente de Conde (PB), ex-presidente do Conselho Municipal de Desenvolvimento do Meio Ambiente de Conde e ex-presidente do Comitê Gestor Municipal do Projeto Orla de Conde (PB).
Fonte: ConJur
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