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Artigo – A consagração e a racionalidade do princípio da concentração no registro imobiliário – Por João Pedro Lamana Paiva
05 DE DEZEMBRO DE 2022
Em síntese, está sedimentada na sociedade a compreensão de que o melhor para o Brasil é que os operadores do Direito confiram o máximo de efetividade ao dispositivo em evidência.
A lei existe para gerar paz e estabilidade social. Quando ela não produz tais efeitos, precisa ser adequada. Nesta perspectiva é que foi publicado o art. 54 da lei 13.097/15, procurando resolver um problema que afligia a toda sociedade brasileira: a insegurança jurídica nas contratações imobiliárias. Esta lei não é perfeita também, mas trouxe considerável evolução. Não se pode considerar o retorno à realidade estabelecida antes dela, não é possível impugnar a lei. Ela integra regularmente o ordenamento jurídico e seus efeitos já estão demonstrando maior eficiência no tráfego negocial envolvendo imóveis.
Importa destacar que antes de existir tal dispositivo, a lógica estabelecida para as contratações imobiliárias era irracional. Exigia-se de quem pretendia adquirir um imóvel a obrigação de realizar uma via crucis infindável, consideradas as diversas competências jurisdicionais, no intuito de tentar desvendar a existência de alguma ação judicial contra o vendedor tendente a gerar efeitos perante o negócio jurídico que se pretendia realizar, sem que fosse possível alcançar a segurança esperada, pois a apresentação de certidões dos distribuidores forenses não assegurava, na plenitude, a inexistência de processo ou de citação regular. Questões de competência processual impediam o alcance da segurança esperada, pois qualquer pessoa pode responder a um processo fora da sua residência ou domicílio, dependendo do dano causado, como por exemplo um acidente de trânsito.
Desse modo, de um lado tínhamos o vendedor tentando alienar seu imóvel, mas sem informar eventual demanda pela qual respondia (desatendida aí, por si só, a boa fé), e, de outro, o comprador tentando, apoiado nos mecanismos que até então lhe eram oferecidos, desvendar um mistério. Tal busca, além de retardar a realização do negócio, era muito onerosa. O custo do Direito, consequentemente, era demasiadamente acentuado para o objeto investigado (alcance de informações fidedignas). A seleção adversa (falta de informação precisa e ocultação de fatos por quem pretendia alienar imóvel) onerava sobremaneira a contratação imobiliária pela necessidade de se (tentar) buscar informações visando a uma contratação hígida.
Qual foi, então, a evolução implementada neste processo de busca de informações visando a uma contratação imobiliária segura? Aplicar a lógica que proclama Dormientibus non succurrit jus (o Direito não socorre aos que dormem). Ao invés de repassar à sociedade o custo da investigação, passou-se a exigir uma proatividade de quem deseja alcançar a oponibilidade do seu interesse, publicizando-o na matrícula do imóvel. Se alguém tem alguma pretensão envolvendo um imóvel deve lhe conferir publicidade para que esteja protegido. Não o fazendo, terá para si o ônus de provar que um adquirente de imóvel não estava de boa-fé. Toda ação tem uma reação: averbando seu interesse terá a presunção de fraude para alegar, cancelando um registro de transmissão se não houver patrimônio para resguardar a ação; não averbando, terá de provar a fraude na negociação. A consequência, portanto, foi a de inversão do ônus da prova ao conferir ao interessado o dever e a responsabilidade de publicização da existência da demanda judicial.
Assim, foi necessário estabelecer a ideia de concentrar em um único órgão a informação necessária para uma contratação imobiliária segura, conferindo uma mais ampla simetria à informação e tornando o custo do Direito menor, gerando maior eficiência econômica. Nesta nova lógica todos ganham. O mecanismo hoje requerido é que se averbe um interesse na matrícula do imóvel e, para isso, a lei ocupou-se até mesmo de prever uma despesa básica correspondente (ver art. 56, §1º da Lei nº 13.097/2015, ou o art. 98, §1º, IX do Código de Processo Civil). Quem optar por não publicizar seu interesse na matrícula do imóvel assume para si o ônus de provar que houve fraude na alienação deste. Equilibrou-se, assim, o sistema.
É evidente a transformação e a evolução. Fraude só poderá ser caracterizada quando ocorrer uma alienação de imóvel contra interesse previamente publicizado na matrícula, e não quando não houver a demonstração deste interesse (salvo quando provada a má-fé do alienante). Possível correlacionar a matéria com os princípios da rogação ou instância, do protocolo e da inércia.
Com efeito, restou estabelecido, hoje, o ônus legal do interessado em publicizar seu interesse, e não mais um ônus para a sociedade de ter que realizar amplas investigações e buscas de diversas certidões, em inúmeros órgãos e jurisdições, até porque estas buscas não garantiam absolutamente o negócio. Ou seja, na ausência de averbação da existência de execução na matrícula do imóvel resta caracterizada a boa-fé do adquirente.
Ressalta-se: o propósito da lei é o de permitir a ordem e a estabilidade social, o que vem sendo alcançado pela inovação para o Direito e para a Economia, decorrente do art. 54 da lei 13.097/15.
Na prática, já se percebe como o Poder Judiciário, em especial a Justiça Laboral, vem acertadamente enfrentando a questão. Relevante destacar recente julgado do Tribunal Superior do Trabalho (TST – ROT: 16793420185090000, Relator: Alexandre De Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 18/05/2021, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: 21/05/2021), por meio do qual, em apertada síntese, o Tribunal manteve decisão que julgou procedente a ação rescisória em homenagem à segurança jurídica, respeitando quem, desvestido de boa-fé, ainda buscou informação no ambiente próprio, no caso, o Registro de Imóveis, e não encontrou publicizado interesse jurídico contraditório algum sobre o imóvel, apresentado por quem demandava contra o seu proprietário.
Segundo consta do decisum, reportando-se ao art. 54, parágrafo único da legislação em evidência (atualmente parágrafo 1º):
“5. Com o aludido dispositivo da lei 13.097/15 consagrou-se o princípio da concentração dos atos registrais, com vistas a conferir maior segurança jurídica àquele que adquire um imóvel de boa-fé, uma vez que exige que todas as informações sobre o bem constem na sua matrícula, inviabilizando qualquer pretensão futura de decretação de ineficácia do negócio calcada em elemento estranho ao registro. “.
Pondera-se que o princípio da concentração – salvo nas exceções previstas no §1º do art. 54 da lei 13.097/15 (arts. 129 e 130 da lei11.101/05), nas hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independa de registro imobiliário e quando da incidência do art. 185 do Código Tributário Nacional (norma com status de lei complementar) – servirá para afastar os efeitos deletérios de situações ocultas ou clandestinas, não protegidas porque não publicizadas pelo modo como a lei hoje considera essencial para a proteção da sociedade.
Vale lembrar que o Código de Processo Civil, em 2006, quando do advento da lei 11.382, fomentou a aplicação do Princípio da Concentração, através do art. 615-A. A partir deste momento o credor passou a ter a faculdade de averbar a distribuição da execução de modo a prevenir a fraude à execução. Com a criação da certidão premonitória – e aqui, pedimos vênia para utilizarmos a feliz nomenclatura atribuída a este ato pelo insigne Registrador Sérgio Jacomino – o quadro mudou, antecipando os efeitos dessa presunção antes mesmo da citação do devedor/executado. Logo, o exequente não precisa aguardar o aperfeiçoamento da penhora, podendo, desde a instrução da ação de execução, antes mesmo da citação, assegurar a publicidade do seu interesse. Até mesmo quando da distribuição de ação de conhecimento é possível noticiar um interesse na matrícula, exigindo manifestação judicial específica para tanto (art. 54, IV da Lei nº 13.097/2015).
Posteriormente, em 2010, com a edição da Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça, solidificou-se em plenitude o Princípio da Concentração que, em conjunto com a referida súmula, tem permeado os decisórios da Corte superior, sendo a orientação jurisprudencial consolidada, como se percebe da leitura da ementa a seguir reproduzida:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DA PARTE AGRAVADA.
1. Segundo a orientação jurisprudencial consolidada nesta Corte, o reconhecimento da fraude à execução exige a anterior averbação da penhora no registro do imóvel ou a prova da má-fé do terceiro adquirente, consoante se depreende da redação da Súmula n. 375/STJ e da tese firmada no REsp repetitivo de n. 956.943/PR
1.1 Hipótese dos autos em que o Tribunal de origem, ante a inexistência de prévia penhora ou anotação de execução na matrícula do imóvel, reconheceu a ocorrência de fraude à execução, a partir de presunção de má-fé do terceiro adquirente.
2. Agravo interno desprovido. – (AgInt no AREsp 1016096/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 30/08/2021, DJe 02/09/2021).
Finalmente, com a chegada do novo Código de Processo Civil ampliaram-se as possibilidades de publicização de interesses jurídicos na matrícula de um imóvel, cabendo ao exequente optar por dois tipos distintos de averbação: a da distribuição da execução, a partir da obtenção da certidão do ajuizamento do feito, nos termos do inciso XI do art.799 do CPC; ou, ainda, a da admissão da execução, nos termos do art. 828.
A lógica que hoje está estabelecida é mais simples, gera maior eficiência (jurídica e econômica) e segurança: um interesse jurídico sobre um imóvel precisa estar publicizado no ambiente próprio (Registro de Imóveis) para alcançar oponibilidade perante terceiros, valorizando, com isso, a sistemática registral imobiliária. Simples assim.
O registro é antitético da clandestinidade. Quem não deu a conhecer seu interesse averbando a existência de uma ação na matrícula do imóvel assume para si o ônus de provar que o adquirente da propriedade não estava de boa-fé. Terá que realizar prova suficiente em juízo visando à desconstituição dos efeitos de um registro de transmissão, como se verifica do recente julgado demonstrando que a prova da má-fé continua sendo causa para a desconsideração de negócios (REsp 1.981.646-SP), e com razão, pois o ordenamento jurídico é autocorretivo, ele mesmo contendo mecanismos para expungir situações-problema. No caso concreto do decisório citado, havia sido formalizada uma transmissão imobiliária, via dação em pagamento, do executado para sua filha menor de idade, em evidente intuito de fraudar; logicamente que, provada a má-fé. Outrossim, tivesse a alienação ocorrida noutro contexto, para terceiro, ou seja, uma alienação lícita, certamente o trato da questão seria diverso, como deduzido no acórdão da justiça laboral supramencionado. Vale destacar que o §2º do art. 54 da lei 13.097/15, incluído pela novel lei 14.382/22, não exige a apresentação de certidões forenses ou dos distribuidores judiciais, nem outra certidão que não a da matrícula do imóvel (agora com efeito ampliado em face do §11 do art. 19 da lei 6.015/73), como condição para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente.
Assim sendo, não será mais exigida a obtenção de quaisquer documentos ou certidões além dos previstos na lei 7.433/85, restando dispensada a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais, valorizando ainda mais o Princípio da Concentração e o Serviço Registral Pátrio.
Por conseguinte, ao contrário do que sustentava o vetusto entendimento (revogado), o art. 54 da lei 13.097/15 não fragiliza o instituto da fraude à execução, mas, pelo contrário, colabora com ele quando elucida, com precisão, que não se deve transferir à sociedade o custo e o ônus de realizar a busca de certidões outras que não apenas a da matrícula do imóvel, o que vai ao encontro da tão esperada desburocratização e do alcance de maior eficiência. Nesta toada, a lei 14.382/22 que alterou a lei 6.015/73 e a própria lei 13.097/15, também tratou de ofertar modernidade e maior dinamicidade para o sistema registral, em diversos aspectos, inclusive quanto à segurança nos registros de contratos imobiliários.
Importante ressaltar que as inovações legislativas e as decisões judiciais têm contribuído para o entendimento de que o modelo de segurança jurídica proporcionado pelos mecanismos advindos do Princípio da Concentração deve ser mantido, uma vez que tal modelo constituiu a vanguarda da negociação imobiliária, tornando impensável e impossível o retorno à sistemática anterior, o que seria um retrocesso. Mais do que isso: o Princípio da Concentração nasceu de uma necessidade dos cidadãos e, portanto, a mudança que ele traz para a sociedade há de ser cumprida e respeitada.
Em síntese, está sedimentada na sociedade a compreensão de que o melhor para o Brasil é que os operadores do Direito confiram o máximo de efetividade ao dispositivo em evidência. Os interesses em jogo não são corporativos, mas da sociedade brasileira, a qual por muitos anos reivindicou o aperfeiçoamento da legislação sobre a matéria agora experimentado. E quando o direito e o anseio do cidadão são contemplados por uma norma jurídica o sucesso de sua aplicação e os benefícios daí decorrentes são indubitáveis, revestindo-se a norma em instrumento para contribuir com o desenvolvimento da nação.
João Pedro Lamana Paiva
Registrador de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre. Especialista em Direito Registral Imobiliário, pela PUC – Minas. Graduado em Direito Registral pela Universidade Ramón Llull ESADE – Barcelona
Fonte: Migalhas
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